O ECLIPSE

Ilustración Euro Montero
Una lettera scritta sopra un viso
di pietra e vapore.
São Paulo, 2023. A sala de um apartamento em Perdizes. Sobre a mesa (redonda): no centro: há uma embalagem (amassada) do restaurante Arabesco; ao fundo, em direção à janela (aberta): há um prato sujo, talheres; 90º à esquerda: há uma garrafa de vinho (Trapiche, Malbec, 2021, promoção online) (esvaziada pela metade); 90º à direta: há uma taça (quase esvaziada), os escombros de um par de óculos escuros, um celular iPhone (apagado) e um laptop MacBook Air (aceso) – diante do qual está Joanna, sentada, respirando ofegante. De um lado da janela, há um relógio carrilhão; do outro, um aparador com uma caixinha de remédios, um talão de cheques e a fotografia de um homem.
Joanna respira ofegante porque sente: desejo, atração pela transgressão, dúvidas O que é que vão pensar?, a Marlene?, dúvidas O que é que o Rui vai pensar?, dúvidas Mas: se não agora, quando?, medo, culpa Um passo tão inesperado. E Joanna impeliu seu indicador canhoto para a frente e para a esquerda: fazendo com que a bamboleante seta preta espelhada se atirasse, brusca, rumo ao semáforo simbólico, horizontal, rumo ao círculo amarelo Atenção; e Joanna alçou e bateu Tuf {surdo} o dedo no trackpad: fazendo com que a seta acertasse o centro do alvo Daqui a pouco. A seta manteve-se fixa, mas o Safari desapareceu – deixando, no lugar, a imagem de um Rui sorridente em seu aniversário de quarenta anos.
Isso, inserir Rui no plano de fundo, ela conseguira; entretanto, ações realizadas com naturalidade no computador de sempre, um Dell desktop, configuravam-se repletas de pequenos obstáculos. Mas ele jurou que era normal Algumas adaptações e que Relaxe logo ela se acostumaria, até se esqueceria dos comandos anteriores. Onde fica o til? Recusar o presente? Frustrar Rui? Jamais. Joanna toca Toc a superfície dormente do iPhone Bastava o telefone, simples de mexer, que acende: revela o horário: 16:41 (sobre um recorte vertical da imagem [op. cit.] de um Rui sorridente atrás de um bolo branco Abacaxi com coco, diet por minha causa).
No carrilhão, simultaneamente, os ponteiros anunciavam quatro e trinta (em algarismos romanos pomposos, mas com o quatro representado IIII) Ah, aumentou para onze.
Rui deslanchara, enfim, na profissão Produtor de Cinema (profissão que, projeto a projeto, acabou substituindo o sonho primordial: de se tornar diretor, artista :Difícil :Para o público é só filme estrangeiro :Só besteirada hollywoodiana :Com streaming, então :Originalidade? :Inventividade? :Apoio zero :Grana zero); deslanchar, porém, é conduzir uma canoa por um charco. E há muitas despesas mensais; dois filhos, a esposa jornalista desempregada. Mas de Joanna, ele nunca descuida.
Toc: 16:42. Cedo. Joanna puxa para perto a embalagem Arabesco; ela mergulha as pupilas, envoltas em véus gris-azuis, pacote adentro; ela resgata, do pacote, guardanapos imaculados, que acompanharam (cortesia) o pedido “Homus” e “Kibe Frito” – o pedido, uma extravagância para o almoço deste sábado: ela estava feliz, afinal, estava apaixonada(!). Merecendo. Embalagem nas mãos, Joanna sai da mesa.
Em sua trajetória à lavanderia, mesclada a pendentes Calça-Pijama-Azuis-Camisola-Beges, mesclada a ideias e raciocínios menos claros, e ao subconsciente, Joanna alinha a seguinte sequência de reflexões:
Eu deveria ter pedido, hoje, no restaurante árabe?
E se o entregador, hoje, do Hamas?
Existe Hamas em São Paulo?
Razoáveis os dois reais de gorjeta, no aplicativo Rappi?
Lixo fedorento.
Embalagem Arabesco + embalagem Pinati.
Levo o lixo amanhã de manhã.
Eu deveria ter pedido, ontem, no restaurante kosher?
“Hummus Shawarma” e “Falafel”.
Extravagância para o jantar de sexta.
E se o entregador, ontem, do Hamas? Infiltrado.
E se ele envenenasse a comida?
Razoáveis os dois reais de gorjeta, no aplicativo iFood?
O Rui disse que preciso defender os palestinos.
Mas: e a Marlene?
A Marlene postou no Instagram um sinal de alerta.
A Marlene sentenciou:
Quem não postar defendendo Israel é antissemita.
Eu não sou antissemita.
Eu não quero ser antissemita.
Joanna retorna para a sala, retorna para a mesa; senta-se. Laptop apagado. Celular apagado. No relógio carrilhão, comprado por seu pai em 1953, os ponteiros anunciavam quatro e trinta e cinco; a década de cinquenta: uma década próspera para os negócios (para a especulação imobiliária) da família Costa Mello. Toc: 16:46. O que é que aconteceu? [Ela olha para uma fotografia de Paulo sobre o aparador.] O que é que você fez, Paulo? Como é que você gastou aquilo tudo? Se Joanna tivesse feito a faculdade. Se ela não tivesse obedecido seu pai, que Deus o tenha, não tivesse obedecido Paulo, que Deus o tenha, e fosse advogada – sua vida … ?
A filha da Marlene mora com a família em Tel Aviv.
O filho da filha da Marlene: convocado para a guerra.
O Rui não mora em Gaza.
O Rui não mora em Tel Aviv.
Os filhos do Rui: convocados para a guerra? Não.
(Graças a Deus.)
Não importa o … ?; valeu. O Rui. Também o Bill, agora. William. Certa angústia, todavia, dominava Joanna: ela estava feliz e apaixonada(!) em um período de sofrimentos, conflitos, caos. Talvez ligar para Marlene? Talvez rascunhar uma mensagem de WhatsApp. Escrever o quê? Toc: 16:47. Perguntar se ela está bem Você faltou na hidroginástica de quinta. Não: Marlene seguramente viu que Joanna viu os stories sobre Israel. Marlene sabe que Joanna sabe que o neto de Marlene é soldado.
Escrever, na mensagem, Desculpa, amiga? Por ter encontrado amor nesta fase, para o planeta, devastadora? Nesta altura, amor? O Bill detesta WhatsApp. Espírito antigo. Que sorte, a dela. Joanna tem esse direito, não tem? Sozinha desde 2009, desde o – súbito – infarto de Paulo. Súbito. Ambulância. Velório. Enterro. Luto. Solidão. Súbito. Infinito. E há dois meses Joanna é outra Joanna Rejuvenescida, inclusive.
Mas a Joanna que Joanna delirava de si é dissipada pelo toque do despertador – o celular acende: 16:48. [Ela olha para uma caixinha de remédios sobre o aparador.] Apesar da expectativa do despertador, fora do padrão, aquele toque fez com que ela se assustasse de leve e, interrompendo o alarme, recapitulasse os remédios do dia: tomou o da pressão, o do colesterol, tomou a injeção de insulina.
Doze minutos, no carrilhão, para o eclipse.
A palavra eclipse trazia, um clique, Alain Delon e Monica Vitti – e Delon vivaz no escritório-mercado-ringue da bolsa e Vitti em tomadas lentas, um clique, transportavam-na para o ritmo peculiar, para o silêncio, para o ruído, para o cenário de seu filme favorito, Roma ficcional?, e para os sítios arqueológicos das lembranças Foi no Bijou? de venturosa época e venturoso contexto: adolescente solta pelo centro de São Paulo, ficcional?, ainda sem marido e filho, ainda sem os militares. O Rui gosta de O Eclipse, mas prefere A noite; mas prefere, na verdade, Almodóvar (Joanna gosta de Almodóvar, mas considera Almodóvar às vezes obsceno, impróprio; mas às vezes ri com o que considera obsceno, impróprio).
Onze, no carrilhão.
Joanna pega e coloca seus óculos escuros (Ray Ban, que ganhou do pai: ao completar dezesseis anos) e dirige-se à janela. O céu. Vislumbra apenas uma espessa trama de nuvens-nuvens-nuvens cinzentas. Nenhum espetáculo solar anular, nenhum eclipse. Nenhum anel de fogo Nada. Inútil janela. Ela vira a fotografia de Paulo para baixo. Ela retorna para a mesa e, gole único, entorna o resto do vinho (o doutor Chico liberou uma-duas tacinhas, duas-e-mei-); senta-se.
Tuf {surdo}: o laptop acende: uma paisagem e Saturday, 14 October / 16:50 / Joanna Costa Mello Alves / Touch ID o indicador destro or Enter Password ou a senha: 1-9-6-2 –
1962, o filme de Antonioni Foi no Bijou?
e, 1962, o Ray Ban Foi uma festa de arromba,
1962, o primeiro cigarro Foi no Marrocos?,
e 1962, o primeiro drinque Foi no Riviera?,
1962, o primeiro beijo Foi na Galeria Metrópole
e, 1962, o futuro: imenso: uma arquitetura
preciosa, com portas e portas, mas que
se iriam fechando. Fechando. Sumindo?
Lacunas? Crateras?
Ruínas?
Um cheque pelo correio? Não adianta. Joanna se entristece com o talão de cheques – físico, palpável – empoeirado-engordurado sobre o aparador. Outrora havia, impressas em cada folha, ***** cinco estrelas. Outrora, ela frequentemente manuscrevia Hum mil, assim, com agá. E, súbito, um vão mais expressivo do que as estrelas, gritante. E assinar Joanna Costa Mello Alves: um gesto perdido.
Alves. Tirar o Alves? Joanna Costa Mello – de novo?
Todo mês cai a aposentadoria de Paulo: boletos no débito automático, promoções online, açougue às terças, hortifruti às quartas, um eventual pedido Extravagância; sobram, todo mês, quinze-vinte reais. Trocados. E resiste, com tropeços, desde o inventário, a poupança da Caixa. Cinquenta mil. Será que o Bill perceberá o Alves e implicará? Tirar? O Bill é ciumento, o Bill avisou. Como tirar? No cartório? Joanna reabre o Safari
e já o site do banco Ué
e seta rumo ao semáforo tombado
e ao círculo verde-Fosco?-Musgo?-Ué?,
e Melhorou? Piorou? à aba (2 não lidos): joanna.cos- do Yahoo – a tela Ué esquisita, baça, inteira escurecida.
Com ambos os indicadores, em fôlego contínuo, Joanna digita:
Dear Bill, How are you ? Sorry for my bad English,always. Im sending fifty thousand reais,it is all I have saved in bank . This is all I can send for the marriage, ok Thanks you for promising to pay back in the month of November. I will need because my son cant discover this and the fifty-thousand reais are all I have. I love you it is a very Blessing to found you in life. Im dreaming about how you look personally. You are so handsome,my miracle ! When you did arranged the marriage and determined the day exact of the Church, I will tell Rui . February, ok February is much good for Rui because his kids are going to be at school vacation. Im sure Rui will make the American visa to me and buy plane tickets and himself and his family are going to travel with me from Sao Paulo Sao (I dont know how put accent Sao here in this fancy little computer) to Austin to our marriage. It will be a party ! A breakdown party! It will be of Hollywood! (Do you agree on a cake diet ) You will like Rui .He is a good boy . And his sons,my grandsons, are good , are the most beautiful of the world. his wife is nice . I want to invite my friend Marlene too,but she only is thinking about her grandson who is a soldier for Israel. Do you have a side by the way? Lets hope the war is finished until February!Im sending now the money. I will follow the instructions to transform in crypto coins. And send,ok Tell me if gone right. Did have the eclipse in Texas?Only clouds from my window. Do you like Antonionis Leclisse?Kisses, Joanna Costa Mello
Começa a tocar Caetano Veloso: Michelangelo Antonioni – ao final da canção, blecaute.
